A precarização de serviços, a falta de medicamentos e insumos básicos, a suspensão de cirurgias e até a demora na distribuição de comida são alguns dos cenários que marcam o atual momento do Instituto Dr. José Frota (IJF), o maior hospital municipal de Fortaleza, especializado no tratamento de traumas de alta complexidade. É o que apontam relatos de usuários, sindicatos e profissionais que atuam na unidade ouvidos pelo Diário do Nordeste.
O panorama de deficiências contrasta com a importância da unidade de referência para a saúde pública cearense, gerido pela Prefeitura de Fortaleza, e que atende pacientes da Capital e do interior do Estado.
A reportagem conversou com alguns acompanhantes e cuidadores que convivem no IJF, durante uma visita ao local, na manhã da última quinta-feira (14). Os depoimentos têm pontos em comum: inexistência de medicações e itens essenciais, como fraldas e lençóis, cancelamento de cirurgias, falta de estrutura para acompanhantes e demora na entrega das refeições.
Um dos relatos mais graves foi recebido pelo Sindicato dos Médicos do Ceará (SIMEC-CE). Uma denúncia confidenciou para a entidade que, durante uma neurocirurgia de urgência, uma paciente precisou ficar três horas com o crânio aberto porque o hospital não tinha dreno. O procedimento só foi finalizado depois que o item – que custa cerca de R$ 30 – foi enviado do hospital Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza, por meio de uma moto de aplicativo.
Diante do caos que se arrasta desde o começo do ano, publicizado pelo Diário do Nordeste em junho, e tem se intensificado nos últimos meses, o Ministério Público do Ceará (MPCE) ingressou com Ação Civil Pública (ACP), em 7 de novembro, para que a gestão municipal resolva a situação do abastecimento de remédios e insumos.
As denúncias recebidas pelo MPCE apontam que 279 dos 375 medicamentos estariam com estoque zerado no Instituto. Ao mesmo tempo, 263 insumos médicos, como agulhas, sondas, drenos, fios de sutura, entre outros, não estariam disponíveis – do total de 513 itens.
Em resposta, o Tribunal de Justiça do Ceará determinou, na última terça-feira (12), que os envolvidos – Prefeitura, Secretaria de Saúde e IJF – têm 72 horas para manifestarem-se após a notificação, que deverá ser feita de forma presencial, o que pode acarretar datas diferentes nos possíveis retornos.
Acionada pelo Diário do Nordeste na última quinta-feira, sobre o assunto, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Fortaleza repassou a demanda para a assessoria do próprio IJF. Por sua vez, a equipe do hospital não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Um dos casos que evidenciam a situação do IJF é da Maria (nome fictício), de 41 anos – que preferiu não se identificar, – acompanhante da mãe, de 61 anos, que está internada há quatro meses no hospital, à espera de uma cirurgia no fêmur. Ela conta que o procedimento já chegou a ser marcado duas vezes, mas foi suspenso por uma série de carências, que vão de insumos a profissionais.
“Segundo eles, tinha que ter uma equipe preparada para fazer essa cirurgia da minha mãe, mas só que já tá com muito tempo e ela não fez nenhuma. Falta medicação, falta gaze, falta seringa, falta tudo”, desabafa a mulher.
Ainda segundo ela, há dias em que faltam medicamentos básicos, como tramadol e dipirona – utilizados no alívio da dor. “Ontem mesmo tive que comprar [tramal] lá para outra paciente do mesmo quarto que o médico deu a receita [mas não tinha]”, falou a usuária, em depoimento dado no dia 14 de novembro.
‘CRISE DE LENÇOL E FRALDA’
“Já tivemos plantão aqui de não ter nem um pacote de fralda e a gente, na hora que o paciente estava inundado de xixi, sem poder higienizar porque não tinha fralda, simplesmente [não dava para] tirar a fralda urinada e trocar o lençol e deixar o paciente sem nada, a não ser que a família tivesse”, evidencia uma técnica em enfermagem que trabalha no hospital – que não será identificada por questões de segurança.
Segundo a profissional, a lista de insuficiências abrange até mesmo itens importantes para o dia a dia nos leitos. “Tem plantão também que tem ‘crise’ de lençol, de não ter lençol porque a empresa não [manda], eu não sei o que é que acontece. Não sei se o hospital que não paga a empresa. Sei que já teve dias de também não vir lençol”, comenta.
Uma outra enfermeira, de 44 anos – que também não será identificada por questões de segurança – confirmou os relatos sobre a falta de itens básicos e medicamentos no hospital. Em conversa com a reportagem, na saída do IJF, a profissional comenta que é preciso estar “se virando” para fazer curativos, por exemplo.
UMA ESPERA SEM RETORNO
Luiz, de 39 anos, veio de Paraipaba, na Região Metropolitana de Fortaleza, e deu entrada no IJF em 8 de novembro, após sofrer uma fratura na clavícula e uma pancada na cabeça. Desde então, ele espera a visita de um neurologista, sem ter retorno ou previsão de quando o especialista virá. É o que conta Bruna, de 29 anos, que acompanha o irmão na saga para conseguir o tratamento adequado.
“Meu irmão está precisando de cetoprofeno [utilizado para o tratamento de inflamações e dores] e não tem, está sendo medicado com apenas dipirona. (..) Não estamos em leito, estamos em uma sala com macas uma em cima da outra e uma cadeira de plástico, inclusive, até quebrada”, denuncia Bruna.
Francisco (nome fictício), de 20 anos, é outro acompanhante que lida com a rotina do hospital. Ele está junto com o pai, de 52 anos, que fraturou a tíbia. Os dois não sabem quando voltam para General Sampaio, município onde moram na região do Vale do Curu.
REPOUSO E ALIMENTAÇÃO SÃO DESAFIOS
No atual cenário, que escancara uma série de dificuldades, o papelão pode ser o suporte mais acessível para fugir das longas horas em uma cadeira de plástico. Essa é a forma que Francisco encontrou para dormir, já que a unidade não disponibiliza poltronas ou espreguiçadeiras, por exemplo. Ele conta que funcionários do próprio hospital arranjam o material à noite.
“Nem pode entrar lençol, nem dão. Aí você tem que dormir no papelão no chão, você não pode nem usar um lençol que sobra a mais para você forrar o papelão, você também não pode, aí fica complicado a situação, até para você acompanhar a pessoa”, revela.
Há momentos em que nem cadeiras estão disponíveis, aponta a técnica em enfermagem – citada no início da reportagem –, já que as quebradas não são substituídas. Com isso, o número vai diminuindo, deixando mais acompanhantes em pé e sem nenhum tipo de local para repouso.
Além disso, todos os relatos ouvidos pela reportagem dão conta do atraso da entrega das refeições, que em maior grau tem prejudicado a alimentação dos acompanhantes. Já houve dias em que o almoço para eles chegou após às 15h. Em alguns casos, o atraso também atingiu a refeição dos pacientes, como comenta a técnica de enfermagem que, no dia que falou com a reportagem, o lanche da tarde só chegou próximo às 17h.
O cenário de precarização do Instituto Dr. José Frota está no radar da Justiça. O Ministério Público cearense ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP), em 7 de novembro, a partir da 137ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, após os problemas de abastecimento de remédios e insumos na unidade persistirem desde o início do ano.
Em maio, o IJF e o MPCE fecharam um acordo que previa uma solução para o caso em até três meses. À época, já eram apontados prejuízos no fluxo de atendimento, aumento do tempo de internação e adiamentos de cirurgias. As carências não foram resolvidas, culminando na ACP.
Em 11 de novembro, a ACP do Ministério Público teve o primeiro desdobramento: os envolvidos têm 72 horas para apresentar manifestação após serem notificados.
Por conta da transição entre o governo Sarto e Evandro Leitão (PT), prefeito eleito de Fortaleza, a ação requer também que o abastecimento tenha uma autonomia de 60 dias. Nesse sentido, o MP faz uma exigência: a retomada do estoque não deverá ocorrer à custa da retirada de materiais de outros hospitais da rede – um prática comum em outros momentos, segundo Uchoa.
Entre outras cobranças, o MPCE solicita a criação de um comitê para acompanhar todo o processo, incluindo questões ligadas aos recursos necessários.
A situação do maior hospital municipal de Fortaleza também é vista com preocupação pelo Sindicato dos Médicos do Ceará (SIMEC-CE). “A palavra que melhor define é desmonte”, enfatiza o médico Leonardo Alcântara, que é secretário-geral da entidade.
Em uma visita ao setor de emergência do IJF (salas vermelha e laranja), além de verificar que vários corredores tinham pacientes em macas, o SIMEC recebeu relatos de falta de antibióticos básicos, cetoprofeno e morfina para analgesia, além da carência de vasopressores essenciais, como a vasopressina.
Alcântara conta que as principais queixas são o desabastecimento com falta de insumos, condições desumanas de trabalho e atraso de pagamentos de médicos que prestam serviços através de cooperativas. O diretor relatou, ainda, duas denúncias de cirurgias que foram canceladas por falta de insumos ou de equipamentos.
Representando profissionais de nível médio e técnico que atuam na área, o Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Ceará (Sindsaúde/CE) é outra entidade que acompanha o cenário de insuficiências por meio do relato de colaboradores do hospital.
A diretora do Sindsaúde, Marta Brandão, conta que, para além das carências envolvendo remédios e insumos, as maiores queixas envolvem o subdimensionamento da equipe de saúde. Com isso, os profissionais têm uma maior sobrecarga de trabalho, o que motiva maiores índices de afastamento.
O momento caótico vivenciado pela unidade de referência pode ser agravado. Isso porque profissionais da Cooperativa de Clínica Médica do Ceará (COOPCLINIC) e da Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas do Ceará (COOPANEST) ameaçam suspender os serviços, caso a situação financeira referente aos pagamentos não seja regularizada, conforme divulgado pelo Sindicato dos Médicos na semana passada.
A COOPCLINIC deu um prazo até 1º de dezembro para que a paralisação seja evitada, desde que o problema seja contornado. A entidade denuncia que os faturamentos não têm sido realizados mensalmente, resultando em um tempo excessivo entre a prestação dos serviços e o recebimento dos valores devidos.
Por sua vez, a COOPANEST requer que os pagamentos dos anestesiologistas que atuam no IJF sejam regularizados até 20 de novembro. Caso não haja solução, os profissionais cooperados podem iniciar uma greve.
“O Sindicato dos Médicos vem acompanhando a situação do IJF com bastante preocupação. A cada dia que passa os problemas se intensificam, prejudicando não apenas os profissionais, com relação aos atrasos de pagamentos, mas à população, que não está recebendo o atendimento adequado”, destacou o médico Luigi de Morais, presidente interino do SIMEC-CE.
Diário do Nordeste