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Mulheres criam clube de carimba em Fortaleza, reforçam laços e voltam a brincar: ‘Terapia coletiva’

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E se a gente se reunisse para brincar depois de adultas? O pensamento tomou algumas mulheres de realidades distintas ligadas pelo amor por uma brincadeira que, pouco a pouco, se tornou coisa séria para elas.

Tornaram-se as Destemidas do Carimba. O grupo nasceu descompromissadamente numa viagem entre amigas, quando decidiram brincar de algo para passar o tempo. De pronto, sugeriram aquilo que mais fazia brilhar a memória da infância. 

“No fim de semana seguinte, estávamos em casa falando no grupo de WhatsApp e surgiu a vontade de continuar jogando”, conta empresária e corretora de imóveis Jairylane Albuquerque.

Dito e feito. Inicialmente, dedicavam apenas 20 minutos para o carimba em frente à casa de uma delas. Pouco a pouco, a coisa foi mudando. Perceberam que não dava mais para brincar como quando eram crianças. Havia necessidade de espaço. Foi assim que ligaram para um lugar específico a fim de reservar uma quadra apenas para as partidas.

Hoje, um ano após esses primeiros momentos, as Destemidas têm uniforme próprio e jogam semanalmente na Arena Family, bairro Maraponga, em Fortaleza. São um clube. Às terças, quartas e quintas, às 19h, competem apenas os times femininos; às sextas, no mesmo horário, os times mistos. Cada partida dura, em média, oito minutos.

“Usamos as regras gerais do jogo de carimba, porém fomos adaptando algumas à medida que sentimos necessidade. Um exemplo é a penalidade para bolada na cara e a questão de retornar do ‘morto’ – o que torna a partida demorada. No nosso time, a jogadora não pode voltar, mesmo que carimbe alguém estando no ‘morto’”, detalha Jairylane.

No instante da divisão dos times, são consideradas as habilidades de cada jogadora. Um aplicativo auxilia nessa tarefa a fim de manter os times equilibrados, com capacidade de competir de igual para igual e, assim, tornar o jogo mais intenso. Em dias habituais, são três quadras ocupadas e sete times, 60 pessoas jogando e um time de fora.

“Nosso clube tem em torno de 100 pessoas ativas. Oitenta por cento são mulheres. Tenho um grupo de 49 delas que joga duas vezes por semana, e um com 32 que joga uma vez por semana. O grupo misto geralmente reúne em torno de 35 jogadores”.

Para quem não é jogadora fixa do clube, existe um grupo de WhatsApp somente para as visitantes. Nele, as organizadoras lançam uma lista de espera para cada partida. À medida que surjam vagas, abre-se espaço para mais gente. 

Para ser mensalista fixa da agremiação, a candidata precisa ter jogado, no mínimo, quatro jogos com o clube. Se der tudo certo e a nova pessoa se encaixar no perfil do projeto – tendo alguns princípios básicos a seguir – está dentro. E que comece a partida!

O caráter lúdico da brincadeira – nessa espécie de retorno à infância sem deixar de ser adulto – é apenas um dos vários benefícios da iniciativa. Segundo Jairylane, o próprio sentido do jogo mudou para ela ao longo dos 14 meses que o Destemidas está em ação. 

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“Várias vezes passou de um jogo divertido para um projeto social, além de ter encarado muitas outras fases. Hoje, o carimba, pra mim, é uma terapia coletiva que proporciona a mulheres a vivência de um momento divertido dentro da rotina exaustiva do dia”.

Kaelly Portela que o diga. A social media e designer iniciou no grupo em fevereiro de 2024 depois de uma amiga comentar que havia conhecido o clube. Bastou ir uma vez para nunca mais largar. “Não jogo em nenhuma posição específica, mas sou ágil, tenho muita velocidade. São minhas principais características”, situa, recordando de, quando criança, jogar carimba no meio da rua.

“Se considerar a questão da saúde, a minha mudou muito. Jogar carimba é um cardio de duas horas que fazemos, além da resistência física. Por outro lado, de modo geral, o grupo me acolheu, me abraçou e hoje somos uma família. Sei que posso contar sempre com elas para jogar, me divertir e encerrar o dia com chave de ouro”.

A jogadora vai além. Afirma que o clube auxilia diversas mulheres a superar depressão e ansiedade, contribuindo para o desenvolvimento pessoal. Muitas chegam tímidas e com medo de não se adaptar; depois, vencem a si. “Aqui, encontram a alegria de um dia triste. Sabem que, na hora do jogo, é o nosso momento de se divertir e esquecer o que deixou em casa”.

Quem também tem algo bonito para contar é Claudiane Carlos. Uma das veteranas do clube – integrante desde setembro do ano passado – a designer de unhas perdeu o marido há quatro meses e credita ao Destemidas o fato passar pelo luto com menos severidade. “Elas não me deixaram só nesse momento difícil”, destaca.

“Nunca deixaram de segurar minha mão e por isso estou aqui hoje, tentando dar meu máximo por elas no carimba. É muita diversão. Temos pessoas de todas as idades com a gente e tentamos acolher todas. Quem puder nos visitar, vai ser bem legal”.

Segundo ela, além de sair do sedentarismo, a maior conquista foi se tornar uma pessoa melhor a partir do princípio da empatia. Agora é mais propensa a escutar e a ver, no rosto das colegas, se aconteceu algo capaz de desestabilizá-las. “Fico pronta para ajudar, apesar do dia a dia corrido. Meu sentimento é de gratidão por tê-las em todos os momentos da minha vida”.

Professor da Universidade Federal do Ceará e coordenador e curador do Museu do Brinquedo de Fortaleza, Marcos Teodorico aprofunda o tema ao investigar as origens do carimba – que, inclusive, possui vários nomes ao redor do Brasil e do mundo, a exemplo de queimada, baleado, caçador, mata-soldado, entre outros.

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Conforme estudos do pesquisador, o assunto remete à História e à Antropologia. “Existem vários relatos na Idade Média falando sobre o carimba. A versão mais aceita está relacionada ao norte da Europa Meridional, onde existia o reino da Papônia. Nele, o rei Papus treinava o próprio exército contra a invasão dos bárbaros por meio do arremesso de bolas de fogo”.

A técnica atingiu resultados tão surpreendentes que o lugar foi um dos poucos da Europa a escapar do domínio bárbaro. Baseada nessa lenda, o carimba se espalhou pelo mundo e, com pequenas diferenças de regras, tornou-se um esporte largamente praticado por crianças.

Teodorico enfatiza, contudo, não se restringir somente aos pequenos. Em diferentes culturas e países, até competição de carimba existe. No Brasil, para se ter uma ideia, existe a Federação de Baleado da Bahia, a Federação Pernambucana de Queimado e a Federação Paraibana de Baleado. “Elas elevam a discussão sobre o jogo do carimba como atividade de competições estaduais e interestaduais, com direito a troféu e medalha”.

Índia, Japão, Estados Unidos e Portugal também são apontados pelo professor como outros redutos do carimba – ou como quer que seja chamada nessas outras nações. Por ser um jogo tradicional, é praticado e experimentado por diferentes culturas do planeta. Não à toa, algumas das principais características dele são tradicionalidade e transferência de saberes.

“É um jogo que requer habilidades de ordem motora, cognitiva, de noção espaço-temporal, trabalho em equipe, estratégia, planejamento, resolução de problemas… Ou seja há inúmeras possibilidades dentro dele na formação humana – tanto no aspecto psicológico quanto no sociológico, antropológico, biológico e motriz do jogador”.

De volta ao Destemidas do Carimba, Jairylane Albuquerque diz que a ideia é que o time alcance outros bairros de Fortaleza e se torne um projeto social reconhecido. A ideia é auxiliar pessoas a sair de situações de ansiedade, depressão e sedentarismo por meio de uma atividade que remete à infância e faz todos terem um momento nostálgico.

“O que mais prezo e luto diariamente com minhas meninas é nunca perder a essência de ser uma grande família, de nos solidarizarmos umas com as dores das outras, de sermos refúgio e abrigo para qualquer mulher que precisar de apoio. Além do jogo, existem ali corações sedentos de amor e carinho”.

Ao que Marcos Teodorico complementa: “O carimba, como experiência lúdica e potente, vem passando de geração em geração e pode contribuir na vida de cada um de nós. As mulheres que vivenciam essa experiência com certeza vivem coisas altamente impactantes e significativas na vida e podem, com toda a aprendizagem que esse brincar traz, transformar a jornada delas. Brincar é um ato de vida; logo, uma manifestação de amor. Se negamos o direito de o indivíduo brincar, negamos o direito dele viver”.

Diário do Nordeste

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