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Menino vegeta há 4 anos após cirurgia no punho; médicos negam erro

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No fim de 2020, aos 11 anos de idade, Miguel Saliba brincava gravando vídeos para o TikTok. Fazia dancinhas coreografadas, cantava sertanejo a plenos pulmões, mostrava orgulhoso o material escolar recém-comprado, falava com seriedade sobre desenhos animados orientais e pulava de alegria com os gols do Athletico Paranaense. A rotina agitada das férias de fim de ano foi interrompida por uma leve fratura no punho esquerdo quando jogava vôlei em casa. Mesmo com o gesso retirado do braço, o menino foi submetido a uma cirurgia ortopédica simples e rápida para evitar riscos no desenvolvimento regular da mão. Desde então, Miguel está em estado vegetativo e irreversível, com graves lesões cerebrais. Só mexe os olhos. No próximo mês, o garoto completará 15 anos de idade.

Quatro anos depois da cirurgia ortopédica no Hospital Home, em Brasília, as investigações da Polícia Civil do Distrito Federal ainda não foram concluídas. Ninguém foi indiciado, denunciado ou julgado. O inquérito criminal por lesão corporal gravíssima segue em curso, no aguardo de mais um laudo médico, a pedido do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT).

A família de Miguel cobra na Justiça R$ 5,7 milhões em danos morais e materiais, acusa o Hospital Home de obstruir a apuração, e o médico anestesiologista Cleyverton Lima, de lesão corporal gravíssima. O hospital e o médico negaram qualquer irregularidade à Justiça. Procurados pela coluna, apenas o Home enviou um comunicado, sem responder aos questionamentos. Leia o posicionamento do hospital na íntegra ao fim desta reportagem.

A família também sofre com a morosidade da investigação, que se arrasta há quatro anos. O responsável pelo caso, delegado Antônio João Dimitrov Borborema, da 1ª Delegacia de Polícia de Brasília, afirmou em um relatório recente não ter visto crime no episódio, mas foi instado pelo Ministério Público a fazer novas diligências — leia ao fim da reportagem o posicionamento da Polícia Civil.

“Intercorrência na anestesia”

Cintia Saliba levou o filho ao Hospital Home, na Asa Sul, em Brasília, no início da manhã de 20 de dezembro de 2020. Após duas recomendações médicas, a família concordou em operar o punho de Miguel. Segundo depoimentos da equipe médica, o menino de 11 anos chegou ao hospital chorando e precisou ser acalmado antes da sedação. Cintia foi tranquilizada: o procedimento duraria até 20 minutos e seria elementar. Três horas depois do previsto, a mãe de Miguel, aflita, recebeu as primeiras notícias dos médicos. O cirurgião Paulo Sérgio Queiroz disse que a cirurgia do punho foi um sucesso e durou 17 minutos, mas ressalvou que houve uma “intercorrência na anestesia”, segundo Cintia disse em depoimento à Polícia Civil.

O anestesiologista Cleyverton Lima afirmou à mãe do menino que o paciente teve bradicardia, uma queda forte no ritmo dos batimentos cardíacos. Depois de algumas aplicações de medicamentos, Lima disse ter obtido “êxito”. Depois, intubaram e sedaram Miguel “por segurança”. “Ele passaria aquela noite na UTI e, no dia seguinte, seria extubado, bem como acordaria sem sequelas ou problemas”, afirmou Cintia, relembrando o que ouviu do médico. Perguntou a Lima se havia algum risco de falta de oxigenação cerebral, o que o anestesiologista negou.

Os médicos recomendaram que Miguel deveria ser transferido logo para um hospital que tivesse UTI pediátrica, o que foi feito. Miguel foi, então, levado ao Hospital Brasília, entubado e sedado após a cirurgia no punho.

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“Ele não acordou”

“Os médicos da cirurgia nos disseram que Miguel acordaria em breve. Ficamos esperando que ele acordasse ainda naquele dia 20 de dezembro. No dia 21, não acordou. No dia 22, não acordou”, disse o pai de Miguel, Michel Saliba, em entrevista à coluna.

No Hospital Brasília, a equipe médica tentou extubar Miguel, na expectativa de que o menino recobrasse a respiração por conta própria. Como o coração já estava no ritmo normal, era esse o esperado. Em 22 de dezembro, dois dias após a cirurgia ortopédica, a extubação foi feita, sem sucesso. “Extubaram, se passaram alguns segundos. Quando perceberam que o Miguel não consegue respirar, voltam a intubar”, disse o pai de Miguel. Em seguida, Miguel passou por uma ressonância magnética, que constatou lesões cerebrais graves, de acordo com os médicos do Hospital Brasília.

O anestesiologista, por outro lado, minimizou o resultado: afirmou na ocasião que as lesões “não eram significativas”, e voltou a dizer que “a qualquer momento” Miguel acordaria. Irritada, a mãe de Miguel pediu que o anestesiologista não voltasse ao hospital. Poucos dias depois, Miguel foi transferido ao Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, onde passou cinco meses em tratamento intensivo de fisioterapia, buscando que voltasse a respirar normalmente. Nesse período, os médicos do Sírio também constataram lesões cerebrais críticas. “Foram observadas as lesões de natureza hipóxico-isquêmicas [lesões por falta de oxigênio no cérebro] de maneira difusa no córtex, mas também acometendo núcleos da base e tálamos”.

Em janeiro de 2021, um mês depois da cirurgia, o Home foi intimado judicialmente a apresentar as imagens das câmeras internas. O hospital, contudo, disse não ter mais os vídeos que mostrariam a movimentação dos funcionários em torno da sala de cirurgia. Alegou que seu sistema descartava as gravações após 14 dias.

O anestesiologista Cleyverton Lima deu novas informações sobre a cirurgia de Miguel e citou, por escrito, que houve uma parada cardiorrespiratória durante a cirurgia, fato até então desconhecido pela família do menino. Os familiares suspeitam que o garoto passou a cirurgia com o rosto coberto, o que impossibilitou que os médicos percebessem a pele azulada ou a língua caída pela oxigenação precária. Também receiam que o anestesiologista tenha demorado a perceber o quadro, quando deveria ter intubado o menino antes de ter tentado reanimar o coração.

“A gente revive essa história diariamente nesses quatro anos. Eu enterro meu filho todo dia. É um luto diário. Enterrar o filho é uma coisa: você enterra e leva a dor e a saudade. Mas, no meu caso, eu vejo meu filho morto, vivo, diariamente. Tenho que trabalhar, lutar, viver, tenho mais duas filhas para criar”, afirmou Michel Saliba, o pai de Miguel.

Segundo o pai, o jovem, prestes a completar 15 anos, não consegue ficar sentado sem apoio. “A consciência dele é praticamente nula, não entende nada, não movimenta nada, só os olhos. E há quatro anos ele entrou no hospital sem nenhum histórico de problemas cardíacos, respiratórios, neurológicos ou motores”, pontuou o pai de Miguel, acrescentando que tenta manter o filho vivo em busca de eventuais avanços na medicina que possibilitem a recuperação do quadro. A precariedade da situação contrasta com o fato de, segundo os familiares, a cirurgia não ter deixado cicatriz no punho esquerdo que foi operado.

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Questionado sobre como classifica a conduta dos médicos, respondeu: “Vergonhosa. Os médicos deram depoimentos contraditórios. Pelo menos um está mentindo”. Sobre a conduta do Home, analisou: “Desrespeito à vida e aos sentimentos dos familiares”.

O advogado André Callegari, que representa a família Saliba no caso, apontou inconsistências nas versões dos médicos e do Home.

“Os documentos apontam que houve uma lesão corporal culposa, não intencional. Talvez por uma falha de procedimento. Me parece que talvez o anestesiologista não tenha sido suficientemente atento e tenha negligenciado, em alguma parte, a cirurgia”, afirmou Callegari em entrevista à coluna.

O criminalista defendeu que a Polícia Civil do DF indicie os médicos, para que a apuração seja aprofundada.

“Há incongruências. Se a autoridade policial atentar para tudo isso, o caminho correto é o indiciamento. Se o anestesista acredita ter feito todo o procedimento correto, isso tem de ser apurado dentro do processo criminal”, completou.

O delegado atualmente responsável pelo caso é Antônio João Dimitrov Borborema, da 1ª Delegacia de Polícia de Brasília. Em junho deste ano, Borborema enviou à Justiça um relatório final de cinco páginas, no qual disse não ter visto indícios de crime no caso. O delegado apontou que um laudo do Instituto Médico Legal (IML) endossou as condutas dos médicos, e que o anestesiologista apresentou uma perícia em sua defesa. “Parece-nos, portanto, não haver mais qualquer diligência realizável que permita agregar elementos de convicção”, escreveu, classificando as sequelas de Miguel como “um resultado naturalístico extremamente lamentável”.

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios não concordou com a conclusão policial. Pediu mais um laudo e diligências. Desde então, o inquérito aguarda esses complementos.

Hospital e médicos negam irregularidades

Em documentos enviados à Justiça em março deste ano, o Hospital Home negou qualquer irregularidade em sua conduta ou na dos médicos que operaram Miguel Saliba. Conforme o hospital, o anestesiologista, Cleyverton Lima,
é um “profissional qualificado” e “extremamente detalhista e cuidadoso”. “Em que pese a referida intercorrência, certo é que a mesma não decorre de erro de qualquer integrante da equipe multidisciplinar que assistiu a Miguel [sic]”, declarou o Home. Ainda de acordo com o hospital, toda cirurgia tem “riscos inerentes”, e os médicos, “liberdade de conduta”.

Procurados por meio do Home, os médicos Cleyverton Lima e Paulo Queiroz não responderam. O espaço segue aberto a eventuais manifestações.

A coluna também questionou o Home se Miguel ficou com o rosto coberto durante a cirurgia; se havia aparelho de intubação no centro cirúrgico; e se o paciente não deveria ter sido intubado antes da reanimação cardíaca, por ser uma criança. O hospital enviou a nota abaixo.

“O Hospital Home se compadece, compreende e respeita a dor da família e do paciente. Esclarece que tem prestado todas as informações sobre o caso à Justiça, de modo a comprovar a qualidade dos serviços prestados e não deixar dúvidas acerca da ausência de qualquer responsabilidade do hospital no atendimento ao referido paciente. O hospital irá aguardar o término dos processos para se pronunciar”.

O delegado Antônio João Dimitrov Borborema não respondeu. A Polícia Civil afirmou: “O inquérito policial está judicializado, sendo exauridos todos os procedimentos policiais possíveis e solicitados”.

O Hospital Brasília afirmou: “O hospital não compartilha informações sobre pacientes obedecendo o que dispõe a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)”.

Metrópoles

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