O palhaço chegou. A roupa é extravagante, o cabelo colorido, a cara pintada e o nariz vermelho e avantajado. A menor máscara do mundo, a que menos esconde e a que mais revela. Pode-se dizer que o palhaço é uma das profissões mais perigosas que existem porque, para fazer rir – feito mais difícil do que fazer chorar -, ele precisa mostrar quem realmente é: um ser humano. Ali, no palco, às vezes sozinho, exposto, o palhaço está no lugar do ridículo e precisa se aceitar do jeito que é: aceitar os defeitos, rir deles, errar, cair, fracassar e fazer outras pessoas rirem de tudo isso junto com você.
Sim, ser palhaço é difícil, é a maluquice das maluquices. E, no Ceará, a terra do riso, o que muito se encontra são palhaços. Não à toa o Estado é conhecido no Brasil por seus muitos humoristas famosos, que já tiraram boas gargalhadas dos brasileiros na televisão, nos teatros e nos picadeiros.
E um dos grupos que vem fazendo a alegria das crianças e dos adultos na terrinha, e além, é o K’Os Coletivo da palhaça Tramela e o palhaço Pipiu. Desde 2006, os artistas cearenses Aline Campêlo e Aldrey Rocha, junto com sua equipe, levam a palhaçaria, a comédia, a improvisação teatral dos palcos cearenses para todo o Brasil.
O grupo já se apresentou em quase todo o Nordeste, e esteve também no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Brasília. Além disso, participou de festivais na Colômbia, Portugal e Argentina. Aline e Aldrey garantem que diferenças culturais e de linguagem não são barreiras para o riso, que é um idioma universal.
Aline e Aldrey, ainda crianças, gostavam de arte, e, de certa forma, sabiam que queriam ser artistas. Se conheceram em 2005 no curso de Artes Cênicas do Instituto Federal do Ceará (IFCE). A futura palhaça queria, na época, ser atriz cômica, mas, depois de conhecer Aldrey, que já vinha fazendo cursos e oficinas sobre palhaçaria, ela começou a se interessar cada vez mais pelo humor circense.
“O riso que a gente traz numa apresentação pode reverberar em muitos outros risos ou em muitas outras coisas boas”
Aldrey conta que foi graças ao riso que despertava ao imitar artistas famosos que conseguia se aproximar das pessoas, pois, desde a infância, é tímido. A dupla, então, junto a outros amigos, criou o K’Os Coletivo. Inspirado na palavra “caos”, eles mudaram a grafia da palavra original para algo mais próprio, pessoal: o K’Os particular dos artistas. Nascia a palhaça Tramela e o palhaço Pipiu.
“O caos pode ser um bater de asas de uma borboleta que pode causar um vendaval em outra parte do planeta. O riso que a gente traz numa apresentação pode reverberar em muitos outros risos ou em muitas outras coisas boas, em outras partes, pois o riso não fica só ali. Ele acaba transformando, em algum momento, as pessoas”, afirmam os artistas.
Agente social
Não se sabe exatamente quando, onde e em quais circunstancias o palhaço surgiu, mas, de acordo com estudiosos, sua origem remonta a antes de Cristo. Nos tempos medievais, reis mantinham perto de si bobos da corte, os palhaços reais, que tinham a função de entreter a majestade e seus convidados. O bobo, muitas vezes, fazia graça com o próprio rei, até mesmo o criticando.
“O palhaço que está ali ‘apanhando’, nós nos identificamos com ele porque nós também temos as nossas lutas, as nossas quedas”
Nos dias atuais, a tradição da crítica social ainda está muito presente nos espetáculos de palhaçaria. De acordo com Aldrey Rocha e Aline Campêlo, os palhaços podem, sim, gerar o riso pelo riso, mas, também, são seres de resistência, de luta.
“Nós [os palhaços] conseguimos transmitir assuntos sérios, delicados, mas de forma leve, que gera uma identificação quase imediata da plateia. E, na maioria das vezes, a gente ri daquilo porque a gente se identifica. O palhaço que está ali ‘apanhando’, nós nos identificamos com ele porque nós também temos as nossas lutas, as nossas quedas. O palhaço está no campo da loucura, então é permitido que o palhaço fale algo e não ser condenado por isso. Então temos uma certa liberdade para falar. O palhaço também tem o papel de mostrar mazelas que muitos não mostram”.
Interesse feminino
Aline, a palhaça Tramela, lembra que está se tornando cada vez mais comum o interesse de artistas femininas por se tornarem palhaças nos circos e nos teatros.
“Antigamente não existiam palhaças; o ambiente era misógino, preconceituoso. A mulher não podia fazer palhaçaria dentro do circo. Hoje existe um movimento de palhaças que cresce. Meninas e mulheres que se identificam e pensam que elas também podem ser palhaças. E é necessário. E a palhaça não precisa falar apenas de temas femininos, ela pode falar o que ela quiser, fazer e apresentar o que ela quiser”.
O mais humano dos seres humanos
Para o professor e psicólogo Marcio Acselrad, o palhaço é um personagem muito complexo, que mostra as pessoas tal qual elas são e que, ao se colocar em situações ridículas, como o alvo da piada, permite à plateia se encontrar com a sua humanidade.
“O palhaço representa o ser humano na sua máxima fragilidade, o palhaço nesse sentido é um grande mestre para a gente, se a gente assim permitir. Porque, geralmente, quando a gente vive em sociedade, somos convidado a esconder os nossos defeitos, as nossas vergonhas, tudo aquilo que a gente não quer que o outro veja, porque a gente quer ser visto como bom, perfeito, sem erro. E o palhaço é o contrário, é alguém que aceita profundamente a sua humanidade, sua falibilidade, seus defeitos, a sua vergonha”, observa.
“Todo mundo tem muito a aprender com essa figura humana incrível que é o palhaço”
Para ele, o palhaço, que tanto pode ser adorado quanto odiado pelas crianças, já que algumas delas têm medo do personagem, ainda é um entretenimento principalmente voltado para esse público porque é um adulto que fala a mesma língua das crianças. Ele é inocente e ingênuo, características que o mundo adulto, em grande medida, perdeu.
“Eu entendo que isso é uma lição para as crianças, mas principalmente para os adultos. Todo mundo tem muito a aprender com essa figura humana incrível que é o palhaço”, acrescenta o psicólogo, que também coordena um grupo de palhaçoterapia que atua em hospitais infantis.
O palhaço existe, primeiramente, para fazer o outro rir, mas o que será que faz o palhaço rir? Para Aline Campêlo o principal do riso é a espontaneidade, quando vê a piada entrando e dando certo. Ela também ri de cenas bem executadas, quando o palhaço consegue fazer o público esquecer de toda a mecânica que existe por trás do número e se absorve no que está sendo apresentado.
Já Aldrey, que é fã dos Trapalhões, O gordo e o magro, Chico Anysio, Buster Keaton, Monty Python e Charles Chaplin, se diverte muito nos momentos cotidianos, quando está na rua, numa praça, vendo as pessoas comuns vivendo seu dia a dia.
“Não [é apenas] pra mangar do povo, mas também pra mangar. De coisas simples, de um tom de voz, de uma pessoa numa loja, dentro do ônibus. Coisas do cotidiano me fazem rir, mas quando está ligado ao povo. Isso até me alimenta, me inspira, para criar algo para a cena cômica. O que me faz rir é estar no lugar de todos, no espaço público”.
No bairro Joaquim Távora, em Fortaleza, existe hoje a Universidade das Artes, um local que, desde de 2011, serve de palco, escola e produção artística para o próprio K’Os Coletivo, mas também para outros artistas cômicos do Ceará e de outros lugares do Brasil e mundo.
Aline e Aldrey destacam que a Universidade das Artes é um local de formação voltado exclusivamente para a comicidade, a irreverência e a mulecagem própria do cearense.
No local, os artistas oferecem oficinas para iniciantes em palhaçaria, mas, na verdade, qualquer pessoa interessada no assunto pode aparecer e participar. Além disso, na programação da escola, há espetáculos gratuitos não apenas de comicidade, mas também de mágica e malabarismo.