Quando o futebol entrou na vida de Caio Pedro da Silva, um novo mundo começou a se formar. O jogador encontrou no esporte um espaço de inclusão, além da chance de melhorar as condições financeiras. Autista e com surdez nos dois ouvidos, o jovem de 21 anos, formado na base do Horizonte, virou peça fundamental no retorno do time à primeira divisão cearense em 2024.
Campeão da Série B do estadual ano passado com o Galo do Tabuleiro, o lateral-esquerdo tem Marcelo, do Fluminense, e Filipe Luís, ex-Flamengo, time do coração, como referências na posição. Nesta temporada, ele se profissionalizou. O Diário do Nordeste acompanhou um dia de treinamento dele no Estádio Domingão, em Horizonte, cidade da Região Metropolitana.
Em 2023, o meia da seleção da Irlanda, James McClean, revelou estar no espectro. Caio tem limitações na fala, não usa aparelho auditivo e interage bem. Além de acolhimento, Tatiana encontrou no ambiente escolar a chance de integração e desenvolvimento do filho através do esporte. O primeiro contato com a bola veio com o futsal, nos projetos da escola.
“Quando entrou o futebol, aí ele melhorou. Até hoje é danado”, diz a mãe em tom de brincadeira.
“Ela me ajuda muito. Sempre está no meu pé. Nunca deixa eu desistir”, ressalta o esportista.
O menino tímido cresceu e começou a atuar no Ajax da Vila, time da comunidade de Alto Alegre, bairro de Horizonte. Deixou as quadras para dar os primeiros passos rumo a profissionalização como jogador no campo. Chegou às categorias de base do Galo do Tabuleiro. Mas, sem espaço, quase deixou a carreira.
“Fui para o Sub-17 do Horizonte e não gostei muito. Saí, depois fui para o Sub-20, joguei a Copa Seromo (torneio de base). Em 2022, eu não queria jogar. Estava desanimado. Eu queria jogar sempre, mas queria desistir também. Em 2023, o Adriano foi à minha casa, o Vitão, o Júnior e o Zé Hamilton conversaram comigo e estou aí de novo. Agora estou feliz demais”, revelou Caio.
“Insisti, chorei. Mas, graças a Deus, né…”, diz a mãe enquanto olha o filho. “É gratificante fazer parte de um sonho dele”, completa Tatiana.
José Hamilton, tio e funcionário do Horizonte, que o levou para o futebol, ainda na adolescência. Antes de ser lateral, o atleta atuou como atacante, zagueiro e goleiro. A família grande é a torcida favorita dele. Na final da segunda divisão do estadual de 2023, quando o Galo derrotou o Icasa e conquistou o bicampeonato do torneio na Arena Romeirão, todo mundo se reuniu para torcer e comemorar.
O defensor conquistou espaço e saiu do banco para assumir a titularidade na campanha do título do Cearense. Foram 14 jogos, 12 no time principal. Ele marcou dois gols decisivos contra o Crato, na fase classificatória, e diante do Guarany de Sobral, no quadrangular final do torneio.
Caio não esquece da família em nenhum momento. É quando a timidez durante a entrevista fica um pouco de lado. Ele mora coma a mãe, o padastro Joabe Silva e as irmãs Tainá e Analicia, de 15 e 10 anos, respectivamente. Mas levanta o olhar e abre mais um sorriso ao falar sobre o carinho pelos avós Liduina Barros e José Gadelha. Além dos tios, o avô é outro a transmitir sabedoria de vida e de campo.
“Meu avô, que gosta de esporte, me ensina como faz gol, como joga. Ele assiste televisão e dá uns conselhos bons. Ele já jogou bola pelo interior. Ele fica falando, e eu: ‘tá certo’. Aí fala dele, que jogou bola na vida, como é que jogava de volante, lateral, fazia tudo lá”, relembra o camisa 16.
O camisa 16 se define como um jogador velocista, que faz lançamento, cabeceia, sobe para o gol, marca e usa a bola parada. Perguntado sobre as referências na posição, ele brinca.
“Tem muita gente. Quer só um mesmo, é? Marcelo (Cinco vezes campeão da Champions League e quatro do Mundial com o Real Madrid, hoje defende o Fluminense, com quem já ergueu a taça Libertadores.). Filipe Luís também (ex-atleta, bicampeão da Libertadores e do Brasileirão com o Flamengo). Esses dois conheço mais”, destaca.
Caio assinou o primeiro contrato como profissional este ano. Na elite do estadual, estreou na derrota do Horizonte para o Maracanã por 3 a 1, na 2ª rodada do torneio. Sob comando do técnico Filinto Holanda, ganhou espaço e segue em busca de evolução.
“É um atleta com muita força e velocidade, Ele pega rápido o que se pede. Ele entende só em a gente gesticular. E nos ajudou ano passado, fez gols decisivos. É um menino que melhorou em todos os aspectos. Tenho convicção que o Caio vai ajudar muito a família e os clubes que ele estiver atuando. O esporte resgatou esse garoto.”, destacou o treinador.
“Ano passado a gente teve a primeira oportunidade de trabalhar juntos. Mas desde pequeno a gente sempre morou no mesmo bairro. É um cara super dedicado, trabalhador”, disse o atacante Leozinho, companheiro de equipe.
Numa sociedade ainda tão excludente, encontrar um semelhante traz certo conforto. Durante uma partida da Série B Cearense, ano passado, o defensor conheceu uma criança surda no estádio.
“Foi o segundo jogo que eu fiz. Marquei gol, nós ganhamos de 3 a 1. Tinha um molequinho da torcida do Guarany com problema no ouvido também. E no final da partida falei com ele. Percebi que ele gostou de mim. Saí de lá feliz”, relembrou Caio.
Quando o filho entra em campo, Tatiana cumpre um ritual: de terço na mão, ela pede que Deus ilumine Caio e o time. Aos poucos, a mãe vê o menino introspectivo dominar o gramado, tomar iniciativa e se lançar à disputa.
“Se seu filho pega uma bola e diz que quer ser jogador, corra atrás. Corra! É difícil. A gente chora, sofre, passa por bons bocados, mas no futuro a gente vê a recompensa”, enfatiza Tatiana.
“Meu sonho não é ter muita coisa, não. É ajudar a minha família, ter a cabeça erguida, levantada e jogar bola. Não tenho muito sonho, não. É ver minha família feliz e seguir em frente. Eu tenho sonho também de jogar no Flamengo, que é meu time de coração. Ceará… Todos os times”, ressaltou Caio.
“Meu futebolzinho é a coisa mais feliz da vida. Fica longe um pouquinho da família, dos amigos, mas sempre feliz”, finaliza com sorriso de quem vai continuar. Jogar bola não é só esperança de um futuro melhor, mas a realidade de um presente que abre novas perspectivas.
Diário do Nordeste